Há muitos anos, numa manha fria e ventosa, quando os lobos uivavam na serra e o céu se tingia de ameaças de tormenta, um casal procurava alcançar a casa onde viviam, nos arredores quase desertos de Vila Verde.
Quando a porta bateu atrás deles, deixando o vento lá fora, a mulher caiu extenuada sobre um banco de madeira e o homem olhou-a e mordeu os lábios, por remorso ou por piedade, só ele sabia.
Os olhos da mulher, ainda doridos, voltaram-se para o marido. 'Foi para isto que me trouxeste lá da minha terra distante?'
O homem encolheu os ombros, a sacudir as suas culpas. 'Que queres, mulher? Nem tudo pode sair à medida dos nossos desejos. Eu bem te disse, quando casámos: hei-de voltar a Portugal, à minha terra, e lá teremos o nosso lar.'
'Um casebre, um bocado de terra que não dá nada e este tempo horrível, pavoroso, um inferno!' A ironia já sabia a lágrimas.
'Depois da tempestade virá a bonança, acredita. Tem fé, quando tive a sorte de te encontrar lá no Brasil, não te prometi nada que não te tivesse dado.'
Ela ergueu-se como uma sombra. 'Achas que me tens dado tudo o que prometeste? Onde está a terra fértil? Onde a linda quinta no Minho? Onde a nossa fortuna?'
Calaram-se os dois, mas as palavras da mulher ficaram a doer na alma do marido no resto do dia, toda a noite e nos dias seguintes.
Por fim, resolveu-se. O homem foi procurar o velho prior da freguesia. 'Senhor prior, quero que seja o senhor o primeiro a saber: eu vou voltar ao Brasil'
'Que dizes, homem? Que ideia é essa?'
'Aproveito o próximo embarque, conheço aquilo como as minhas mãos, voltarei rico em pouco tempo. Rico, senhor prior!'
O velho padre compreendeu que de nada valia tentar dissuadi-lo. 'E com respeito à tua mulher?'
'Ela ficará aqui, senhor prior, à sua guarda.'
'À minha guarda?'
'Sim. O senhor prior a livrará de maus olhados e de más companhias. Que esta gente, quando a sentir sozinha, não a deixará sossegada. Posso confiar em si, senhor prior, não é verdade?'
'Podes, sim, meu filho.'
O homem levantou-se, de olhar iluminado. Era o princípio da sua vitória. E tal como dissera, seguiu de novo o caminho da aventura. A sua abalada deixou toda a gente das redondezas a falar no caso, pois não era habitual voltar à grande aventura pela segunda vez...
O tempo foi passando, correndo, fugindo. Não voltou a haver notícias do homem que tornara ao Brasil.
Mais cansada, mais triste, mais desiludida, a mulher perguntava-se amargamente 'Que posso eu fazer aqui, sozinha, se o meu marido me abandonou? Foi apenas tentar conquistar fortuna que me prometera, para quê? A fortuna estava aqui ao nosso alcance, ele tinha razão...'
O velho prior percebeu que a hora era decisiva, ou ela se salvava ou ela se perdia. 'Tens de tratar a terra, como se ele estivesse a teu lado. Tens de criar a quinta como ele sempre sonhou!'
A partir de então, a mulher atirou-se valentemente ao trabalho, das fraquezas fazendo forças. Naquele lugar quase deserto e abandonado, começou a surgir uma quinta maravilhosa.
Porém a mulher tudo fizera por uma inspiração febril. E quando a febre se esgotou diante da obra consumada, ela ficou mais gasta, mais triste e mais soturna do que sempre. Voltou ao encontro do velho prior. 'Senhor prior, creio que cumpri o meu dever, mas creio que não poderei durar muito mais tempo, talvez me falte o calor do amor...' Respirou fundo, a recobrar alentos. ' Quer saber uma coisa? Uma noite destas sonhei com o meu marido. Vi-o tal e qual como no dia em que ele abalou, mas já não estava na terra, estava no meio do mar...'
Olhou o prior, ele nada disse. Então a mulher elevou a voz 'Eu também me sinto morrer, só quero juntar de novo ao meu marido...'
'Decerto que sim, minha filha.'
'E esta quinta, senhor prior, este lugar? Para que servirá tudo isto depois de eu morrer?'
'Servirá para mostrar a tua história e o teu exemplo.'
Como ela própria supusera, não durou muito mais tempo. Dizem que morreu sorrindo. Nesse dia, a quinta parecia ainda mais bela.
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